Esta é a viagem no tempo que se começa dando corda numa singela caixinha de música. Enquanto a canção tão suave se esvai a dançarina rodopia alegre e discreta em sua pequenina base. Os olhos da mulher de verdade se fixam naquela evolução que faz a mente levitar pelo universo afora.
Pela janela a brisa se encarrega de trazer a essência pura das flores das cerejeiras e mais além, por caminhos de pedra, uma garoa finíssima tece uma cortina multicor com as agulhas dos raios do sol.
A bonequinha japonesa segue em sua dança de corda naquela ilusão da pequena máquina. A japonesa real sonha com os seus sonhos possíveis e impossíveis e em meio a sua face tão branca, seus olhos rasgados se destacam como se fosse uma criatura de muito além.
O colorido do seu quimono e todos os seus acessórios abrindo as milenares páginas de uma cultura tão especial e curiosa.
A pequena bailarina encerra sua dança e com ela o mundo pára também. Foram-se as cores, extinguiram-se os aromas e a garoa se transformou numa chuva de lágrimas.
Só os sonhos, os possíveis e os impossíveis é que se mantém de prontidão.
Para onde foram as flores das cerejeiras? Quem teria soprado para tão longe o aroma mais puro? Que silêncio é aquele que calou a canção e petrificou a pequena dançarina?
Foram-se as flores, seus aromas, seus amores e também; todos os temores. Só um cogumelo gigante é que tomou conta da cena e assim, acabou com o Japão.
A história escrita com tantas dores não permitiu a entrega nem o desânimo e praticamente do nada, um novo Japão nasceu tão imponente quanto o nascer do astro rei que o transformou no país do sol nascente.
Pequeno em extensão, mas gigante em sua força de reconstrução o Japão superou a todos e a si próprio. E ganhou o mundo com sua tecnologia e sua tradição.
De repente, tantos anos depois da bomba, a jovem japonesa de então, carregando agora o peso de sua idade redescobre perdida sua caixinha de música e tenta lhe dar corda na esperança de ver a bailarina dançar outra vez. As engrenagens enferrujadas demoram a obedecer o comando e a pobre idosa fica decepcionada. Sentada em sua cadeira esquece a caixinha agora inútil e fica relembrando a sua viagem no tempo até que adormece e volta finalmente a sonhar.
Em seu sonho, caminha por sobre as pedras em meio às cerejeiras floridas sentindo na pele alva o frescor de uma brisa tão conhecida. A garoa finíssima lhe toca o rosto como a mais fina cortina e ainda adormecida, ela sorri para os encantos da vida.
Quando acorda bruscamente revive de certo modo um pesadelo antigo, mas agora sem cogumelo. A terra tremeu e as águas vieram violentas, destruindo e carregando tudo.
Novamente tantos outros sonhos se apagaram em frações de tempo como no dia da bomba. Novamente o Japão foi à ruína e mais uma vez o silêncio tomou conta dos corações pasmos diante de tamanho estrago.
A pobre idosa segue recostada em sua cadeira olhando sua antiga caixinha de música agora inerte.
Foram-se a canção, a dança, as cores, as flores e todos os aromas...
De repente, como um desses milagres que a gente duvida, a caixinha voltou a tocar e a pequenina boneca japonesa começou a dançar outra vez com sua expressão de alegria eterna. A pobre idosa primeiro abriu um sorriso e refez uma insólita viagem através do seu tempo.
Tudo muito rápido!
Depois, em sua face já tão marcada pelos anos, deixou escorrer suas lágrimas cristalinas com o coração palpitando e lá, no fundo de sua alma, a mesma esperança antiga se apresentou para lhe dizer que em breve, as cerejeiras estarão novamente floridas e o inconfundível aroma vai se espalhar por todos os cantos para anunciar que o Japão se refez mais uma vez!
-PEDRO BRASIL JUNIOR -
22/03/2011
-publicado originalmente na Usina de Letras
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