quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

E A MOÇA CONTINUA UMA DELÍCIA

E vejam só como nós fazemos descobertas inusitadas a respeito da vida. Quando menino, piá bem pançudo mesmo, descobri que existia o governo, naquele caso, a geladeira GE que ocupava a cozinha da nossa casa. Ali no GOVERNO era tudo normal dentro das condições, ou seja; às vezes só trabalhava aquela garrafa de vidro com água e noutras vezes o lugar ficava entupido de coisas boas. Vai daí que este piá então pançudo descobriu numa das prateleiras do elefantão a existência de uma maravilhosa e convidativa lata de Leite Condensado Moça. Mas que moça deliciosa, no melhor dos bons sentidos, até porque naqueles tempos piá pançudo nem tinha noção que poderiam existir coisas mais atrativas. Deixa prá lá!...

Foi então que transformei (acho que eu era visionário) aquele abrir e fechar de porta do refrigerador num destes intervalos do SBT quando o locutor diz com voz entonada “de hora em hora o resultado da Tele Sena”. Mas ali, de hora em hora era uma mamadinha na lata. Que coisa mais gostosa, uma delícia, um verdadeiro manjar dos deuses de algum planeta todo açucarado.

Mas aconteceu que o conteúdo da lata terminou e foi parar todinho na minha vistosa pancinha. A energia daquele piá de bosta foi aos 220 volts num piscar de olhos ou seria num estalar de beiços?

Minha mãe, dona Maria Brasil nem desconfiava do assalto e eis que recebe uma daquelas comadres para um cafezinho da tarde. Então, topou com a lata vazia e me deu uma olhada de verdugo. Eu sabia que o doce da vida ia se transformar numa amargura com vergões de vara de marmelo. Apanhei mesmo e doeu no corpo e na alma.

Por longo período odiei aquela mulher da latinha. Na verdade odiei o leite condensado por anos. Hoje, passado pouco mais de meio século desde aquele incidente melado descubro que meu crime não foi assim tão grave. Viva fosse minha mãe diria a ela o quanto foi extremamente radical perante atitude tão infantil, daquelas artes que muitos guris mundo afora também praticaram com sublime inocência. Mas a mulher da latinha que tão bem resiste ao tempo, sendo hoje acho eu uma velha centenária, reservou seus requintes de vingança sobre toda uma nação. Hoje o Brasil é um país doce onde, por incrível que possa parecer, são homens com boa idade que adoram dar uma chupadinha na famosa latinha da moça que não envelhece. Pelo menos no rótulo.


- Pedro Brasil Júnior – 27/01/21

BOA NOITE


 

AINDA BEM QUE SOMOS FLEX

Primeiro soa o relógio digital do celular. Depois entra em ação o relógio biológico. Meu corpo se ressente e minha mente faz a pergunta que virou costume: Quais dores teremos para hoje?

Às vezes é o ciático, noutras ocasiões a coluna e tem aqueles dias em que dói a alma.  Vou ter que sair da cama mesmo?

E uma doce e sutil voz diz: “Vai lá e encara a vida de frente!”.

Então começa mais um dia com aquelas trinta e poucas mensagens de “bom dia” no celular. E que o dia seja bom mesmo!

O mundo lá fora vive de pedir um pouco de tudo. Emprego, vacina, água potável, comida, remédios... E o que incomodam a Deus com isto é coisa de doido. Se por onde vive a Grande Alma existir um Serviço de Atendimento ao Cliente pode ter certeza de que todas as linhas vivem ocupadas. Sorte a sua se de repente for atendido em vias assim diretas. O melhor conselho é procurar os “ouvidores” terrenos que tem sempre uma carta na manga e um coelho na cartola para operar um suposto milagre a módicos dez por cento da sua renda. Concorrem furtivamente com o Leão da Receita que suga com toda pompa parte do suor do seu trabalho e sem cerimônia alguma. 

Bem; o dia é de pedir – mais um, aliás – e ouço palmas no portão. Primeiro um rapaz magricela pedindo cinco ou dez centavos. O que você vai fazer com tanto dinheiro assim? Pergunto com um sorriso nos lábios. Ele me olha meio assustado, meio encabulado e fica mudo. Então peço que aguarde e logo lhe trago uma cédula de dois reais. Sua expressão muda e surge um sorriso leve. Ele abençoa a atitude e desaparece lá adiante, bem na entrada de um boteco. Lá foi enganar a fome com a essência da tal “marvada”. E olha; bendita seja a cana que nos dá o açúcar, o etanol e para muitos a ilusão de estômago forrado.

Pouco depois outras palmas. Agora um vendedor de alfajor que pertence a uma instituição com nome estranho. No peito, o “cara-crachá” feito a “pau-a-pique”.  Cada um se vira como pode...

Hora de abrir aquela gaveta farmacêutica e decidir entre um Torsilax ou um Dorflex. É meu amigo, depois dos cinquenta a gente vira “Flex” e pode ser movido a chá, café ou Coca-Cola afinal, “isso é que é!” e lá vou para os afazeres e compromissos do dia depois de uma noite de sono inquieto em função das certezas e das incertezas que nos cercam. O que sei é que lá longe existem mentes brilhantes dedicadas à vida e mentes maquiavélicas dedicadas à morte. É uma guerra sem fim, tanto aqui quanto em estágios da espiritualidade de onde, todos os dias nos enviam novos guerreiros para que possam por aqui evoluir e quem sabe; ajudar a melhorar este mundo infernal.

Já com minha quase inseparável máscara, porque às vezes tenho que voltar porque a esqueci, vou às ruas para resolver pequenas causas, caminhando em terreno minado por este vírus que segue matando muitos e que por uma legião segue sendo ignorado como perigo real. Volto rapidinho e me aconchego nesta cadeira diante do computador para esmiuçar as notícias e topar com as coisas mais estapafúrdias que este século tão tecnológico foi capaz de produzir na maioria das pessoas. Vou à janela e recebo uma golfada de vento. Um vento que me sequestra para a beira do mar e deixo a imaginação seguir aguçando todos os sentidos. O aroma marítimo, o pisar na areia, aquele molhar os pés na água e a visão das gaivotas em rasantes em meio às ondas para pescar. Tateio o rebuliço das ondas que quebram catando algumas conchinhas e me vem à boca um delicioso gosto de viver. Então volto à cadeira, às divagações e recordo que no final da noite passada estive nos confins de Moçambique, a terra do escritor Mia Couto, através de um dos seus livros que acabei de ler. É outra terra que integra o planeta, mas lá tem um bom tanto do que por aqui tanto urge. A esperança, o fim da fome, a água potável e a vontade de dançar na chuva para exaltar uma alegria tão pura e necessária. Então não devemos falar de bandeiras, mas falar de gente, ainda que em culturas diferentes, mas são pessoas que desejam o mínimo que esta grande casa oferece: simplesmente viver!

Diz o Mia Couto com uma visão muito profunda: “ Só existem duas Nações no mundo, a dos Vivos e a dos Mortos”! – Vivamos, ora, pois, ainda que com os Dorflex de cada dia.

 - Pedro Brasil Jr – 27/01/2021