quarta-feira, 29 de julho de 2020

O CASTELO DE AREIA

Ao final do último verão ele teve uma ideia: colocar em prática aquele sonho antigo, ainda de menino – construir um castelo de areia enorme, com todos os merecidos detalhes. Escolheu ali na praia um lugar mais isolado, onde pudesse trabalhar em paz, longe dos olhos e da opinião de possíveis curiosos.
Começou apanhando água do mar numa garrafa pet com o gargalo cortado e, em incontáveis idas e vindas foi molhando a areia e moldando sua construção. Entre uma latinha de cerveja e outra, com paciência jamais vista, foi erigindo sua obra de arte e, mesmo diante à dança dos ponteiros, não parou um minuto sem que chegasse à conclusão do seu feito. Curioso mesmo apenas a presença de uma gaivota que chegou por perto sorrateira, dando uma espiadela naquela maluquice humana. Depois alçou voo e pegou a distância...
Finalmente, depois de quase quatro horas, seu majestoso castelo estava concluído e desafiando as ondas que certamente, no adentrar da noite iriam invadir aquilo tudo com a mesma força de um exército devastador. Ao se posicionar em pé um pouco afastado, ele sacou do celular para fazer uma boa sequência de fotos e registrar como prova o seu talento de grande arquiteto.
Sabia que todo aquele esforço duraria pouco, mas tinha alguns aliados para o combate. Três siris emergiram de suas tocas na areia ali perto e adentraram a propriedade alheia sem cerimônias. Posicionaram-se entre as ameias daquela fortaleza tão frágil como se fossem soldados audaciosamente corajosos para enfrentar o suposto inimigo. 

Ele então tratou de registrar em fotos e deixou aqueles novos amigos em paz. Uma olhadela a mais e partiu deixando suas pegadas na areia quente. O verão se despedia em alto estilo e ele certamente que teria memórias fabulosas para encarar as estações vindouras.
De volta para casa em seu carro, às vezes imaginava aquele seu castelo imponente como se fosse o palco dessas histórias medievais que não dispensam os confrontos e os romances ávidos.
Mas também imaginava as pequenas ondas chegando com a maré alta e carregando sem misericórdia toda a sua obra que levara anos para tornar-se uma realidade de menino crescido, idade avançada e sonhos por inteiro.
Já em casa, transportou as fotos para o computador e tratou de dar nas mesmas uma melhorada usando os fantásticos recursos da tecnologia. Seus planos eram espalhar as fotos e mostrar seu grande feito nestas redes sociais que chegam tão distantes.
Surpresa maior quase o derrubou da cadeira. Ao entrar no universo que engloba pessoas de todas as partes envolvidas nos mais diferentes pensares eis que à sua frente surge a foto do seu castelo.
Mas como era possível? – Pensou consigo diante da tela.
Não havia curiosos e ninguém naquele trecho da praia. O entardecer já abraçava a noite. E ele também não havia enviado a foto para alguém.
Então observou uma vez mais com atenção afinal de contas; muita gente adora construir castelos na areia. Mas era o seu castelo, aquele que ficara guarnecido pelos seus amigos siris e que fazia sim certa diferença na paisagem.
Sob a foto então postada por um desconhecido havia um pequeno texto dizendo: “Se você já construiu castelos no ar, não tenha vergonha deles. Estão onde devem estar. Agora; dê-lhes alicerces.” (Henry David Thoreau) – E a pessoa complementava dizendo: “Eis o castelo que deixou as nuvens, os sonhos e se alicerçou bem aqui, desafiando a força e o poder do mar. Minhas vivas ao audacioso e criativo construtor. Seja lá quem você for, saiba, do fundo do coração que sua obra me encheu de emoção. Há mais de 50 anos, quando menino ainda, também construí um castelo assim e quando as ondas o destruíram eu chorei muito, a ponto das lágrimas deixarem marcas na areia ainda seca. Só anos mais tarde é que entendi como a gente constrói uma vida sólida à partir de sonhos tão simples.”
Então ele respirou fundo, os olhos marejados e o coração palpitando de alegria. Ele havia, finalmente, tocado uma alma distante e desconhecida por simplesmente ter regressado no tempo para não deixar no esquecimento o seu sonho tão singelo e tão grandioso. 

- Pedro Brasil Jr – 29/07/2020 –


quarta-feira, 15 de julho de 2020

SEVERINO CONTINUA MAIS VIVO DO QUE PODEMOS IMAGINAR

Quando eu chegava a este mundo em 1956, João Cabral de Melo Neto acabara de lançar sua famosa obra “Morte e Vida Severina” que conta a trajetória e o sofrimento do itinerante Severino em busca de uma vida melhor na capital pernambucana. De sua jornada, muitas mortes e muita miséria enquanto a busca do seu grande sonho seguia sendo um eterno pesadelo. Considerando que já lá se vão 64 anos desde que a obra foi publicada e que a busca dos “Severinos” por vida melhor nunca acaba, me pego aqui a pensar neste Brasil imenso, habitado por milhares de “quebra-galhos”, alusão feita àquele Severino interpretado pelo saudoso Paulo Silvino num famoso quadro de humor. O Severino de todas as partes continua sendo aquele sofredor aguerrido, capaz de trabalhar com qualquer coisa para dali tirar seu parco sustento. Mas o Severino de todas as partes, a maioria que só sabe assinar o nome e escrever algumas palavras, carrega consigo hoje um CPF e um RG que podem lhe garantir um desses benefícios governamentais que neste atual governo não passam de uma esmola para se criar vadios. Ora; o Severino desse tempo pandêmico carrega, além da eterna esperança de ser digno à existência o seu título de eleitor, passaporte para a tão esperada vida melhor, numa casinha com certo conforto, com energia elétrica e água encanada, um televisor para o entretenimento e é claro; comida no armário. Severinos e Severinas atravessaram distâncias por eles inimagináveis ao longo dessas décadas enquanto eu por aqui crescia tendo uma infância feliz, bem alimentado, com direito à instrução e total acesso ao conhecimento em todas as suas áreas. Cresci um tanto alheio à triste realidade de nossa gente “Severina” tão sofrida, tão explorada, tão pisoteada pelas classes abastadas de uma sociedade hipócrita onde o “outro” em seus andrajos deploráveis passa de mendigo a um perigo iminente que urra feito fera com ecos que retumbam do interior das favelas. 


Quando atingi uma idade plausível para a compreensão da nossa realidade pífia levei um susto ao descobrir um país imenso, dotado de uma riqueza inesgotável e onde, a exemplo da visão do Manuel Bandeira, passava a observar “um homem na lata de lixo”, aquele “Bicho” esfomeado nos assombrando a alma como um fantasma vivo. Então tivemos a fase do “É isso ai, Bicho!”, e nem lembrávamos daquele “Bicho humano” esmiuçando o lixo para comer, para ter a chance de rastejar um pouco mais. E aquilo, para aquele “Bicho” era tudo o que restava. Os restos de uma sociedade humana tão desumana. A Jovem Guarda passou e deu lugar a nossa Velha Guarda repleta de memórias maravilhosas de um tempo em que se falava muito, mas frente a frente. De um tempo em que um abraço era fraternal e verdadeiro e onde o romantismo era uma eterna poesia. Mas o poetinha Vinicius havia dado o aviso: “Que seja eterno enquanto dure”. E não valia apenas para os relacionamentos amorosos homem-mulher. Valia para o amor sobre todos e sobre todas as coisas... Então um belo dia, a exemplo do Big Bang, houve uma explosão e de repente esta terra começou a nos dar uma esperança verdadeira. A quase certeza de que os sofredores Severinos dessa terra imensa e desigual iriam entrar em extinção. Seria a primeira e única extinção de espécie que faria meu coração saltitar de alegria. De repente saímos do mapa da fome, reduzimos a mortalidade infantil, melhoramos nossa posição em variados índices sociais e tudo dava a impressão que o respeito conquistado lá fora definitivamente nos impulsionaria de sexta economia para, quem sabe? – terceira ou segunda. Era uma realidade que finalmente pisoteava o que sempre fora, ao longo de cinco séculos, uma utopia e nada mais. Mas outra explosão estava prestes a acontecer e de repente nossas esperanças sucumbiram vitimas da hipocrisia, do sarcasmo e da total falta de dignidade por parte de facções diretivas sem escrúpulos e capazes de tudo para amealhar o poder. E como cantava o Moraes Moreira: “Lá vai o Brasil descendo a ladeira”. Só que enquanto descemos a ladeira quem passa por nós na tentativa de subir? – Os Severinos então esquecidos. Como uma legião de zumbis desses filmes de terror, eles saíram do chão aflitos, esfomeados outra vez, maltrapilhos, sem destino, sem esperança de sobreviver nesta terra rica que a eles oferece apenas e tão somente a dor, a fome, o lixo e a salinidade de suas lágrimas que escorrem pela face apenas como tentativa de uma nascente do rio da esperança que jamais atinge a grandeza do oceano. Então me bate ao portão o homem esquálido, roupas esfarrapadas, um ameaço de chinelo no pé, barba comprida, olhos profundos, silhueta de um magro verdadeiro. -Moço! Pode me arrumar um trocado? Estou sem comer a dois dias... Prontamente lhe estendo uma cédula de 20 reais. Os olhos brilharam tal qual o de um mineiro que encontra o diamante mais valioso. - Como é seu nome? Pergunto rapidinho. - Severino! E veio de onde Severino? -Ah! Seu moço venho de tão longe que nem sei mais como voltar e se tivesse que voltar, não iria de jeito algum. Sabe? –prosseguiu ele – tenho muitas histórias e nenhum livro. Mas fome já é costume, cadeia já encarei por vadiagem, trabalho desde a roça até a construção de prédio. Mas sempre assim, pedindo aqui e ali e perambulando igual cachorro abandonado. -Espere um pouco Severino. Então voltei com uma calça, uma camiseta, um par de meias e um calçado, tudo meio calculado a olho. Felicidade foi ali. Felicidade de um sorriso franco como há tempos não via. - Seu moço! O senhor é um anjo! Que nada Severino, nem asas eu tenho. -Mas o senhor tem a dádiva de me enxergar como gente. E isto já me basta. E lá se foi pela rua aquele Severino surpreendente que de tão longe veio e que para tão longe irá, presumo eu. Então uma voz lá na alma me indagou: -Já pensou se fosse o próprio Cristo? Pensei sim. E se era o próprio, creio que fiquei com suas bênçãos. De resto, que a esperança não nos abandone e que o tempo possa esculpir em nossa pura gente um coração ainda mais forte para que juntos, unidos por uma causa justa, possamos cantar: “Lá vai o Brasil subindo a ladeira.” -Pedro Brasil Júnior – 14/07/2020

quarta-feira, 8 de julho de 2020

QUE ANO ?

Tenho visto muita gente clamar para que este 2020 termine logo. A maioria já não aguenta tanta desgraça e acredita que, de repente; basta jogar aquele calendário ali da parede no lixo e tudo se resolve. Isto me faz lembrar todas as viradas de ano quando, as pessoas desejam adentrar ao novo com aquele frenesi contagiante que as leva a sonhar com dias melhores, mais produtivos, mais saudáveis e mais ricos também. E o que seria mais um ano além daquela fenomenal volta do planeta em torno do sol? O Universo é mágico em seu sincronismo, mas nós, ínfimos grãos de areia por aqui dispersos, estamos alheios até mesmo aos valores da própria existência. Se bem lembro apenas um homem teve a capacidade de carregar sua própria cruz, nela ser pregado e, antes de um ultimo suspiro, teve a capacidade de pedir ao Pai o seu perdão aos que promoveram toda aquela maldade. E desde então a maldade nunca teve um freio, um fim. E chega-se agora não a um destino insólito, mas a um entroncamento que visa despertar nosso bom senso. 

As desgraças todas não surgiram aleatórias porque sempre tiveram e seguem tendo nossas próprias ações. Queremos um mundo melhor, mas seguimos destruindo a própria casa, como se de repente, por causa de um rato, a gente ateasse fogo na casa só para matá-lo. Sutil ignorância num mundo esfacelado pela desigualdade e pelo descaso. Já perdermos o rótulo de humanidade faz tempo. O trocamos por facções inúmeras, cada uma delas, em seu ponto de origem, envoltas em seus próprios e mesquinhos interesses. Então seria melhor levar este 2020 à guilhotina e pronto! – Cabeça de um lado e corpo do outro e tudo estaria resolvido. O admirável mundo novo teria início, mas infectado por todos os defeitos humanos que hoje se destacam em todos os pontos. E a visão é tão anacrônica que a maioria que almeja o final antecipado do ano nem se dá conta que todos os dias, milhares de pessoas encerram o ano com o final de suas vidas. É mesquinhez sobre a incapacidade de avançar, se proteger e ser protegido; de respeitar e ser respeitado; de se unir para a construção do melhor. Enquanto uma parte seguir puxando a brasa para a sua sardinha seguiremos na mesma condição de patéticos sobreviventes do caos ético e moral. Que o ano encerre quando a Terra perfizer seu trajeto, nesta elipse misteriosa de milhões de anos alheios aos relógios e aos nossos mais distintos costumes. Afora isto, o ano; cada ano – nada mais são do que os reflexos dos nossos passos sobre o gigantesco espelho da existência. -Pedro Brasil Jr – 07/07/2020